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Desabafo sobre passado, presente e futuro da carreira administrativa na PF

Depois de mais de 15 anos de serviço público na Polícia Federal, gostaria de compartilhar alguns pensamentos sobre o passado, presente e futuro da carreira administrativa dentro da instituição.

Ingressei no funcionalismo com a formalização da carreira administrativa na PF, em 2004, no primeiro concurso para a categoria. Era um ano de investimentos no órgão, cujo comando repousava nas mãos do delegado Paulo Lacerda — para mim, um visionário. Lacerda desejava uma PF mais moderna, dotada de uma carreira administrativa capaz de liberar os policiais para realizar atividades de investigação e policiamento, justificando o alto investimento público em formação, treinamento, aparelhamento e remuneração que o órgão estava recebendo. Acredito que ele viu na criação do PECPF uma possibilidade de estruturar de maneira mais funcional as competências em relação aos cargos. Tal pensamento me fez apostar no órgão a ponto de não aceitar a convocação em outro concurso.

Naquele ano, já ingressamos no órgão com melhorias salariais e sempre ouvíamos conversas sobre uma maior valorização da carreira administrativa, por meio da designação formal das atividades de controle migratório e de fiscalização de produtos químicos e de empresas de segurança privada — tarefas de polícia administrativa relacionadas à atividade-fim do órgão, mas que poderiam ser exercidas por servidores não policiais. Tais atividades se juntariam às tarefas administrativas comuns a muitos outros órgãos, mas que, quando observadas de perto, têm suas singularidades em muitos lugares dentro da PF. Por exemplo: qual outro órgão possui um parque tecnológico para realização de exames periciais que demandam pessoas capacitadas para adquirir equipamentos e suprimentos que, em muitos casos, são ímpares no Brasil, servindo inclusive de apoio para as demais polícias do nosso país? Outro exemplo: a aquisição de combustível, peças e equipamentos para aviação operacional, que demanda conhecimento para minimizar o gasto público, garantindo a aquisição de produtos de boa qualidade pelo melhor preço? Não me estendendo muito, poderia citar ainda os técnicos de assuntos educacionais e os agentes administrativos que atuam na formação dos novos policiais, trabalhando tanto na formatação e apoio logístico dos cursos, quanto na instrução propriamente dita, como professores de matérias obrigatórias. Neste ponto, podemos dizer que nossa atividade é quase ímpar no serviço público brasileiro. Qual outro agente administrativo tem este nível de responsabilidade no serviço público nacional?

Imagino que muitas outras atividades poderiam ser exercidas por administrativos e resultariam em economia para os contribuintes. Por exemplo, nos laboratórios forenses, quanto não se economizaria caso auxiliares preparassem soluções e manejassem equipamentos para que o perito pudesse se preocupar exclusivamente com a análise dos resultados dos exames e com o desenvolvimento de novas metodologias e tecnologias periciais? Ainda sobre a melhor utilização dos administrativos no órgão, podemos citar mais alguns benefícios para as atividades policiais: o reforço de setores como o canil das delegacias — muito importante nas buscas por entorpecentes em operações e barreiras policiais — uma vez que apenas um profissional (ou dois) cuidando de um animal treinado para busca de entorpecente é muito pouco; o aumento do efetivo dos plantões, que, em muitos casos, resume-se a apenas um agente de polícia; liberação de escrivães para auxiliar os delegados em cartório, etc.

Mas os anos passaram e, embora convivesse com a necessidade de valorização formal, vi a desvalorização crescer. A começar pelo nível salarial, pois se compararmos nosso salário em 2004 e 2020, qualquer um pode perceber que fomos esquecidos, basta escolher o indexador que comprova a tese: dólar, salário mínimo, inflação, poder de compra, etc. Sobre a renda, já ouvi muita coisa no tempo de negociações salariais: que nossa carreira não é da PF, que nossa negociação é do PGPE e que por isso a negociação era separada dos demais servidores da PF, que não poderiam fazer nada porque não estávamos na instituição, que a CF/88 fala em garantia salarial somente para policiais, que da próxima vez seria melhor, etc. Aliás, a próxima vez nunca chegou depois de 2004. E se não somos da PF, por que temos matrícula da PF? Por que somos subordinados ao DG da PF? Neste momento, poderíamos inclusive perguntar que poderes o delegado Paulo Lacerda tinha a mais que os seus sucessores não têm e que o possibilitaram ter poder e influência para alavancar a carreira administrativa no órgão? Certamente a CF/88 fala em seu Art 144-A §11° que a “remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39”, mas se a CF/88 fala em servidores policiais é porque também existem os servidores que não são policiais e devem ser valorizados de acordo com suas responsabilidades.

Durante estes anos vi a retirada de direitos conquistados. Posso citar a prática desportiva, que foi retirada por falta de uma ação proativa do órgão para explicar as peculiaridades de nossa carreira. Para a carreira policial, a prática se deve ao preparo para as horas de ação na atividade-fim e para diminuir a carga de estresse que causa muitos afastamentos do trabalho. Ocorre que como estamos atuando dentro da instituição, estamos expostos a níveis similares de estresse, pois estes níveis são como a radiação, que não necessita de contato, bastando a proximidade para causar o mal. Isto se agrava quando a área administrativa está repleta de servidores policiais, que muitas vezes procuram ou são encaminhados para tais lugares a fim de fugir do alto nível de estresse da atividade-fim, mas que acabam levando consigo o clima tenso a qual estão acostumados. Infelizmente são vítimas da situação, mas acabam irradiando o problema por onde passam.

Também vi nossa atuação em postos de controle migratório em fronteiras terrestres, aéreas e marítimas, em especial nos grandes eventos que ocorreram no Brasil em 2014 e 2016. Posso citar a atuação administrativa em ações como a Operação Acolhida, que recebe grande atenção da mídia e na qual atuamos ombro a ombro com a carreira policial. Apesar de desempenharmos em muitas das vezes o exato mesmo serviço que o policial, a operação ilustra a discriminação que sofremos no órgão, visto que nem uma simples camiseta de identificação nos foi dada para nos diferenciar de qualquer migrante que estava no local. Tínhamos senha para autorizar a emissão de documentos de permanência temporária em nosso país, mas sequer uma simples camiseta de identificação nos foi dada. Ainda que esteja em análise um processo para confecção de uniformes, temos de pensar há quantos anos isso se arrasta para sair? Tão simples e ao mesmo tempo tão complexo e moroso. Tal fato só pode levar a crer que não somos necessários.

Lógico que não poderia deixar de citar também a atuação dos agentes de telecomunicação na construção das comunicações em operações de difícil acesso. Aliás, se fôssemos citar todos os exemplos de atuação diferenciada dos administrativos na PF, ficaríamos dias lembrando situações que demonstram o comprometimento da categoria e a diferenciação dela em relação a outros órgãos, inclusive policiais, como é o caso da PRF.

Posso dizer que pequenos avanços ocorreram nestes últimos anos, tudo bem tímido. Creio que o maior deles foi o teletrabalho para aqueles quem podem se enquadrar na modalidade. Por falar nisto, nos últimos dias o período de testes foi prorrogado, mas pelo nosso passado, não tenho a expectativa que seja implantado definitivamente, o que lamento para os colegas que podem usufruir deste benefício. Não poderia deixar de citar a carteira funcional e o crachá, que eram diferentes e cuja única distinção que existe atualmente é a menção ao cargo ocupado pelo servidor. E por falar em servidor, a palavra era pouquíssimo usada no órgão — sempre se falava apenas nos policiais. Mas desde o ano passado venho percebendo que começou a fazer parte do vocabulário dos comunicados internos. Parece uma coisa pequena, mas a discriminação começa com coisas pequenas até chegar às grandes. E deixei por último o curso de formação para os aprovados do concurso de 2014, um curso tímido, mas um avanço se comparado a apostila que recebi quando entrei.

Mas diante de tudo isto, fica sempre a pergunta: para quem não é interessante a consolidação da carreira administrativa dentro da PF? Qual seria o prejuízo para a PF se as atribuições já exercidas pelos administrativos lhes fossem formalmente atribuídas? Quando penso nas atribuições da PF, só penso em benefícios. Por acaso a liberação de policiais para a área-fim não seria interessante para a segurança pública brasileira? Não representaria economia para os cofres públicos?

Na contramão disto veio uma recente decisão do TCU, que mudou seu entendimento e decidiu pela legalidade em conceder aposentadoria especial para o policial que fizer qualquer atividade dentro da PF. De duas uma, ou todas as atividades da PF são insalubres, perigosas e atividade-fim a ponto de justificar a despesa ou a decisão representa que é justo para a nação pagar o triplo por um determinado serviço, pois a mesma atividade administrativa realizada por um servidor administrativo custaria 1/3 do valor se comparada a um servidor policial EPA. Mas se comparada a um delegado ou perito, a proporção seria de quase 1/6 em início de carreira, mas que se comparada ao fim da carreira a discrepância seria maior ainda. Isto sem contar a aposentadoria especial, a que o administrativo não tem direito. O desvio de função dentro da PF não é justo nem para a carreira policial, pois prejudica o policial que corre risco de vida na atividade-fim diária. Afinal, quem gostaria de correr um risco maior quando é possível evita-lo trabalhando em funções administrativas? Mas esclareço que não condeno o policial na área administrativa, até mesmo porque o órgão é policial, mas não acho justa a lotação indiscriminada em detrimento da valorização de administrativos e de policiais que estão no combate efetivo e diário da criminalidade.

Neste ponto faz-se necessário buscar uma resposta a uma pergunta que deveria interessar a todos os integrantes da carreira administrativa de um órgão de segurança pública e que já foi falada aqui: qual a diferença entre a polícia administrativa e a polícia judiciária? O site Jus Brasil tem uma resposta esclarecedora a qual transcrevo a seguir:

“A polícia administrativa incide sobre bens, direitos e atividades, ao passo que, a polícia judiciária atua sobre as pessoas, individualmente ou indiscriminadamente. Porém, ambas exercem função administrativa, ou seja, atividade que buscam o interesse público.

A polícia administrativa é exercida por órgãos administrativos de caráter fiscalizador, já a polícia judiciária, em razão de preparar a atuação da função jurisdicional penal, é exercida pela polícia civil ou militar.”[i]

Após este esclarecimento podemos afirmar que a carreira administrativa poderia ser melhor aproveitada na execução das competências da PF com a atribuição formal de atividades que não necessitem de força policial ou que não sejam função de polícia judiciária da União.

Ainda sobre a atividade de polícia administrativa, lembro que, por exemplo, o Ibama tem esta função. Os fiscais do Ibama, embora não sejam policiais, realizam atividades de fiscalização, que incide sobre bens, direitos e atividades, inclusive com o uso de armas de fogo, por justa necessidade do serviço, em suas ações. Trabalho similar fazem os administrativos nos pontos de migração de portos, postos e aeroportos, onde atuam sobre o direito de entrar ou sair do Brasil caso o viajante não respeite a legislação vigente ou esteja sendo procurado pela justiça. E por que não atribuir esta atividade formalmente aos administrativos, uma vez que já a executam? Quanto ao uso da força, atividade exclusiva dos policiais, não poderia ser criado um grupo de segurança de fronteiras para ser acionado em caso de necessidade, nos moldes de um Serviço de Segurança Aeroportuário? Somado a isto, poderíamos incluir as atividades de emissão e entrega de documentos de viagem (passaportes, etc.), necessários aos brasileiros que desejem sair do país, e ou nas áreas de fiscalização de produtos químicos e segurança privada. Imaginem a quantidade de servidores policiais liberados para trabalhar em investigações, inteligência, escuta, cartorário, etc., a fim de exercer as atividades que exijam o uso da força, a qual somente os policiais federais têm competência para exercer.

O crime organizado vem crescendo e se estruturando e a PF necessita responder à altura, combatendo os crimes violentos, de contrabando, descaminho e tráfico de drogas e armas. Neste sentido, em notícia publicada no site Metrópoles[ii], que aborda a ordem de retorno de servidores da corporação cedidos para outros órgãos e estados, o diretor-geral da PF comunga da opinião acima de que a corporação tem demandas crescentes e deve satisfação à sociedade, quando disse: “Ocorre que as demandas são crescentes, e o incremento de pessoal não acompanha. O déficit de servidores é preocupante e pode impactar nas respostas que esta instituição deve dar à sociedade”.

Vejo que normalmente os servidores públicos são conhecidos como indivíduos que fogem do trabalho, mas, durante os mais de 15 anos em que trabalho na área, vi uma categoria buscar por atribuições formais que nunca foram dadas. Pior é saber que absolutamente nada do que eu fizer poderá trazer reconhecimento e melhorias para a categoria, porque há uma crônica crise de confiança entre o órgão e a categoria administrativa. Há a divulgação da gestão por competência, mas nada podemos fazer para mostrar nossa competência e sermos formalmente reconhecidos como verdadeiros servidores do órgão, diferentes em nossas atribuições, mas parte do órgão. Neste momento de reestruturação do país, fico à disposição e almejando fazer mais, mas infelizmente sou impedido pela legislação que em muitas vezes é decretada internamente, que não necessitaria de grandes esforços, nem mesmo legislativos, para mudar. Resta a resignação de realizar meu trabalho da melhor forma possível e torcer por um milagre, que segundo a Wikipédia[iii] significa: um acontecimento dito extraordinário que, à luz dos sentidos e conhecimentos até então disponíveis, não possuindo explicação científica ainda conhecida, dá-se de forma a sugerir uma violação das leis naturais que regem os fenômenos ordinários.

É fato que há necessidade de reforçar o efetivo de servidores nas unidades de ponta, em especial a da carreira policial, e que a PF tem espaço para se modernizar melhorando a utilização da carreira administrativa, dando-lhe formalmente atribuições que já realizam e liberando policiais para atividades de polícia judiciária, a qual tem treinamento e exclusividade para atuar. Resta saber se o futuro da PF passará pela modernização de seus cargos e processos ou se a evolução nunca chegará. Infelizmente, por outro lado, sem a modernização restará a nossa extinção ou redistribuição. Que o esforço do delegado Paulo Lacerda não tenha sido em vão.

Paulo Murilo

Fonte: SINPECPF.ORG.BR

One Comment

  • sinpefpb

    [29/1 14:49] Silvio Reis Santiago: Este desabafo do colega administrativo, é a verdadeira indignação de um componente da nossa briosa carreira de apoio dos nossos irmãos administrativos, pertencente ao Plano Especial de Cargos da Polícia Federal, pois entra e sai governo, MJ e Diretor Geral da Polícia Federal, e nada é feito para que os mesmos sejam reconhecidos e valorizados, em razão dos brilhantes serviços prestados por estes nossos irmãos em prol da Polícia Federal e do povo brasileiro. Até quando os nossos gestores irão cair na real e acordar que VALORIZANDO TODOS OS SERVIDORES DA POLÍCIA FEDERAL, SEM QUAISQUER DISCRIMINAÇÕES. quem sairá fortalecido e ganhará com isso, será a sociedade brasileira e não o crime organizado.

    ACORDA GOVERNO. ACORDA PF!

    SILVIO REIS SANTIAGO
    DIRETOR JURIDICO DO SINPEF/PB E ANSEF/PB.

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